O Brasil está querendo apagar completamente a diferença entre discurso político ruim, mas que precisa ser tolerado, e fake news criminosas
Desde esta terça-feira (22), a Polícia Federal vem vazando informações sobre as trocas de mensagens entre Jair Bolsonaro (foto) e o empresário Meyer Nigri, fundador da construtora Tecnisa.
Nigri e Luciano Hang, da Havan, continuam sendo alvos da polícia mesmo depois de Alexandre de Moraes ter mandado interromper, na segunda-feira (21), as investigações sobre outros seis bolsonaristas que frequentavam o grupo de WhatsApp “Empresários e Política”.
Segundo o ministro do STF, não surgiram indícios de que os seis empresários tenham cometido crimes. A investigação prossegue em relação a Hang porque ainda não foi possível acessar todos os dados de seus celulares. Quanto a Nigri, ele ajudou Bolsonaro a disseminar aquilo que a PF qualificou como “notícias falsas e atentatórias à democracia e ao Estado Democrático de Direito”. Será mesmo?
Na primeira mensagem endereçada a Nigri e divulgada pela PF, o ex-presidente escreveu:
“O ministro Barroso faz peregrinação no exterior sobre o atual processo eleitoral brasileiro, como sendo algo seguro e confiável. O pior, mente sobre o que se tentou aprovar em 2021: o voto impresso ao lado da urna eletrônica, quando se reuniu com lideranças partidárias e o voto impresso foi derrotado. Isso chama-se INTERFERÊNCIA. Todo esse desserviço à democracia dos 3 ministros do TSE/STF faz somente aumentar a desconfiança de fraudes preparadas por ocasião das eleições. O Datafolha infla os números de Lula para dar respaldo do TSE por ocasião do anúncio do resultado eleitoral. REPASSE AO MÁXIMO”.
Não concordo com uma palavra sequer dessa mensagem, mas acredito que para dar a ela o enquadramento criminoso que a PF pretende é preciso apagar completamente a diferença entre discurso político e fake news.
Na primeira parte do texto, Bolsonaro diz que não confia no processo eleitoral; que o ministro Barroso deturpou (a seu ver) as intenções de quem pretendia aprovar o voto impresso; e que a passagem do ministro pelo Congresso representou uma interferência no processo legislativo. Coibir a expressão de opiniões como essas num grupo fechado de mensagens é ir longe demais na tentativa de “proteger a democracia”. É forçar as pessoas a policiar seu pensamento até num contexto privado.
Ah, mas Bolsonaro pede que a mensagem seja repassada ao máximo! Acontece que há maneiras legítimas e ilegítimas de fazer isso. Se os seus interlocutores retransmitiram a mensagem respeitando os limites do próprio WhatsApp, tratá-los como criminosos equivale a criminalizar a própria tecnologia. Se alguém pagou robôs para fazer isso de maneira artificial e clandestina, aí sim haveria jogo sujo. Mas não é uma alegação que se possa fazer só pela leitura da mensagem de Bolsonaro.
O que mais se parece com fake news é a ideia de que o Datafolha e o TSE estão unidos numa conspiração para legitimar a eleição de Lula. Ainda assim, dentro de um grupo fechado essa ideia é paranoia, mas não crime.
Um segundo grupo de mensagens, divulgado nesta quarta (23) pelo UOL, é bem mais complicado para Bolsonaro e Meyer Nigri. Nele há afirmações que não são meras opiniões, como esta, enviada pelo ex-presidente em maio de 2022: “Hackers impediram Bolsonaro de ganhar as eleições de 2018 no 1º turno. Mas não agiram da mesma forma no 2º turno porque o PT não lhes pagou a metade do prometido logo após o 1º turno”. Frases como essa ou são verdadeiras ou são falsas. E essa é notoriamente mentirosa, porque Bolsonaro foi instado a apresentar provas de que houve fraude nas eleições de 2018 e jamais conseguiu fazer isso.
Em outras mensagens há pura e simples incitação à violência. Como quando Bolsonaro encaminha ao empresério um vídeo que, mais uma vez, fala de fraude às urnas e termina com estes dizeres: “A ESTRATÉGIA, O PODER, A QUALQUER CUSTO. O POVO TÁ ESPERTO. Compartilhem. PF precisa ver isso. TEREMOS SANGUE!!! GUERRA CIVIL”.
Alguém vai dizer que traçar diferenças entre a primeira mensagem e esse segundo grupo é firula — que o conjunto da obra incrimina Bolsonaro e seu amigo empresário e isso é o que interessa. Mas não pode ser assim. Abrir mão de critérios para distinguir opinião idiota, mas que precisa ser tolerada numa democracia, e discursos que efetivamente incitam à violência ou contaminam o debate público com mentiras deliberadas é atalho para uma sociedade iliberal e amedrontada. A imprensa, mais do que qualquer outra instituição, deveria entender isso e agir para que não aconteça.