Aventura baseada na boneca tem roteiro certeiro de Greta Gerwig e Noah Baumbach
Como marca, Barbie é uma das mais poderosas do planeta. É difícil achar quem nunca tenha ao menos ouvido falar na boneca que foi lançada em 1959 e, desde então, ganhou centenas de versões, profissões, roupas e acessórios – e, claro, foi vendida aos milhões. Por isso mesmo, a empreitada de levar às telas uma história da Barbie não era sem risco; mexer com uma marca que tem por trás uma grande corporação como a Mattel poderia esbarrar em um sem-número de restrições e vetos; felizmente, não é o caso do filme dirigido por Greta Gerwig e produzido/estrelado por Margot Robbie.
No roteiro hábil de Gerwig e seu parceiro Noah Baumbach, Barbie é, em seu cerne, uma aventura de amadurecimento que opõe a ingenuidade e a perfeição da Barbielândia – o local onde moram todas as Barbies (e os Kens) – aos conhecidíssimos problemas do sexismo no mundo real, no qual a Barbie de Robbie e o Ken de Ryan Gosling vão parar quando a boneca começa a “dar defeito”, como ter pensamentos intrusivos sobre a morte.
Falar de mortalidade e existencialismo pode soar deslocado para um filme-de-marca, mas não há nada nessa premissa que os dois roteiristas não encaixem de forma orgânica na trama, que segue caminhos tão inesperados quanto lógicos; os efeitos da interação Barbielândia-mundo real, afinal, fazem muito sentido, mas talvez não sejam o que o espectador espera – e que a Warner Bros. tenha conseguido manter a trama cheia de ideias de metalinguagem em relativo segredo em meio à massiva campanha de lançamento é um grande ganho.
Para fins desta crítica, basta dizer que Barbie tem comentários afiadíssimos e inteligentes sobre a dinâmica entre homens e mulheres ao longo dos tempos e também sobre como esses papéis sociais são vistos e problematizados hoje em dia. E o filme o faz com um grande coração: a história é genuinamente divertida, com um humor que passeia entre a acidez e a inocência, mas também emociona com a jornada existencial de seus protagonistas, reservando momentos tocantes e provocando reflexões, especialmente em sua reta final.
O deboche é o grande aliado de Gerwig e Baumbach para tratar não apenas do sexismo mas também da questão “corporativa”. Não será estranho se você se pegar pensando “como a Mattel deixou esse filme ver a luz o dia?”, embora seja necessário reconhecer que, no fim, isso não deixa de ser um serviço à empresa, certamente beneficiada pela imagem que tal decisão passa. Rir de si mesmo, no fim das contas, parece ser um pré-requisito para estabelecer uma comunicação com uma geração jovem de consumidores que associa seus hábitos de consumo com um olhar crítico sobre o próprio consumismo.
Em muito ajuda, claro, que Margot Robbie e Ryan Gosling se entreguem aos seus papéis com atuações carregadas de autenticidade, para além da vocação do filme para a ironia e a autorreferência. Robbie confere doçura e sinceridade a sua “Barbie estereotipada”, retratando com sensibilidade seu despertar. Gosling, por sua vez, rouba a cena; seu Ken é simultaneamente responsável por alguns dos momentos mais dramáticos e mais hilários do filme – e, nestes últimos em particular, o ator retoma um timing cômico de tirar o chapéu, como havia mostrado em filmes como Dois Caras Legais (2016).
Dentre o numeroso elenco coadjuvante do filme, Simu Liu diverte com a rivalidade que seu Ken nutre pelo de Gosling; Kate McKinnon, oriunda do Saturday Night Live, traz para sua “Barbie esquisita” um humor mais seco que cai bem em contraste com a perfeição da Barbielândia; e cabe à Glória de America Ferrera, uma das poucas humanas da história, ser o centro emocional – ela, afinal, também tem suas próprias questões sobre seu lugar no mundo e sua relação com a filha adolescente.
Dar lastro a um filme que poderia se perder na paródia de si mesmo não depende apenas de um elenco bem escolhido: o mundo cor de rosa criado pela direção de arte se faz muito palpável, e tudo ali parece distribuído e posicionado com propósito – um bem-vindo contraste no meio da epidemia de efeitos visuais turvos e indistinguíveis entre si que assola outros blockbusters. Tudo na Barbielândia remete a brinquedos muito conhecidos da boneca: as casas sem paredes, os carros pink, as escovas desproporcionais, as caixas com roupas… É um conjunto que se presta ao fan service para quem se importa com isso, e ao mesmo tempo situa muito bem o universo artificial dessa fantasia que está, a cada instante e sem descanso, esboçando um olhar analítico sobre si mesmo.
E é nessa mistura do encanto nostálgico com a inventividade e o humor que o filme cativa. A Barbie, esse ícone tão cultuado quanto criticado, não é posta em um pedestal, tampouco achincalhada; ela ganha uma história deliciosa e esperta, que a atualiza e a humaniza e, principalmente, que diverte. Parece um bom ponto de partida.
O resumo é do Omelete e sua nota para o filme em um projeção de até 5, foi de 5, classificando o filme como execelente.